TESOURINHA, A FLECHA (1921-1979)
Já foi dito que no Rio de Janeiro, em 3 de dezembro de 1921, nasceu Danilo Alvim. Pois bem, nessa mesma data, em Porto Alegre, no sul do Brasil, veio ao mundo Osmar Fortes Barcellos, o futuro Tesourinha, que seria o melhor ponta nacional e da América nos anos 40 do século passado. Como se verá mais adiante, o "maravilhoso ponteiro" - a expressão é de Zizinho - teria ainda muitas coisas em comum com o Príncipe Danilo, além desses dia, mês e ano de nascimento.
Só que, antecedendo a fama, o menino Osmar foi um típico brasileiro: passou fome e a marca dessa carência se estampou no corpo mirrado que ele exibia em 1939, ao 18 anos, jogando pelo Ferroviário, time da Ilhota, ex-vila da capital do Rio Grande do Sul, hoje batizada de Praça Garibaldi. Lá um olheiro do Internacional viu Tesourinha fazendo o que queria com a bola na ponta-esquerda e chamou-o para o colorado gaúcho, à época treinando e jogando no Estádio dos Eucaliptos. De cara, os diretores do clube viram que haviam descoberto um diamante, carente apenas de pequena lapidação de ordem física. E isso foi feito quando o Inter autorizou uma padaria próxima ao estádio a fornecer a Tesourinha pão e leite, a fim de que o novato pudesse adquirir massa muscular. Nessa época, ele não ganhava salário algum do clube e para se manter trabalhava como armeiro na Brigada, que é o nome que os gaúchos dão à polícia militar. Outra medida tomada pelo Internacional: deslocá-lo para a direita - a ponta-esquerda era de Carlitos, o maior artilheiro do clube porto-alegrense e, à época, uma espécie de dono do time. Na equipe colorada havia ainda outros craques, como Ávila e Nena, e se preparava para receber Adãozinho. Estes três iriam para o escrete nacional no anos 40 - sendo que os dois últimos foram reservas da seleção brasileira na desastrada Copa do Mundo de 1950, jogada no Brasil.
Assim, em 23 de outubro de 39, o negro luzidio Tesourinha vestiu pela primeira vez a camisa de profissional do Inter e venceu o Cruzeiro de Porto Alegre. Desde o início, ele estabeleceu empatia à primeira vista com a torcida, iniciando a trajetória de ídolo da história do clube e de um dos jogadores mais completos do País. No ano seguinte, Tesourinha compôs o "Rolo Compressor", que seria hexacampeão gaúcho - de 1940 a 45 -, afora outras conquistas.
Enquanto isso, no resto da Nação repercutiu o prestigio do craque de Porto Alegre. E Flávio Costa, técnico estreante na equipe nacional, não hesitou em convocá-lo para enfrentar o Uruguai em um jogo amistoso em honra aos soldados brasileiros que combatiam o execrável nazi-fascismo, na Itália. Era o primeiro gaúcho a ir diretamente do Rio Grande para o escrete. E o ponta-direita colorado, também debutando pelo Brasil, brilhou nesse 14 de maio de 1944 no campo do Vasco da Gama, em São Januário, no Rio, onde venceu de 6 a 1 aos uruguaios, tendo feito inclusive um belo gol.
A partir daí, Tesourinha ganharia a opinião pública como o atleta excepcional que se deslocava com a rapidez de um raio, driblava divinamente, chutava preciso e servia aos companheiros bolas com açúcar. Tanto que, em 1945, esse craque foi titular absoluto nos 6 jogos do Brasil no campeonato sul-americano do Chile, onde formou este fantástico ataque: ele, Zizinho, Heleno de Freitas, Jair Rosa Pinto e Ademir Menezes. Sobre tal grupo, aliás, o Mestre Ziza escreveu nas memórias: "Foi sem dúvida a melhor seleção em que joguei". E aí então Tesourinha se fez íntimo de Danilo Alvim - inclusive em política, tanto que votaram, juntos com Leônidas da Silva, em Iedo Fiúza, o candidato comunista à Presidência da República. A essa altura, a crítica esportiva de vários países o elegeu como o melhor extrema-direita do Continente. Em dezembro desse ano de 45, a Copa Roca seria jogada no Brasil - que foi o vencedor da competição - com Tesourinha tendo participado do primeiro jogo.
Em 1946, quando o "Rolo Compressor" colorado permitiu que o Grêmio ganhasse o certame gaúcho, com o selecionado brasileiro Tesourinha esteve na Taça Rio Branco - ganha pelo Uruguai - e no tumultuado sul-americano vencido pela Argentina. Neste certame - em só um tempo, contra o Paraguai -, o ponteiro gaúcho compôs a linha atacante do século 20 com Zizinho, Leônidas, Ademir e Heleno. No biênio 47-48, quando se sagrou mais duas vezes campeão estadual, esse legendário ponta do Inter venceu pelo Brasil a Taça Rio Branco. E ainda o campeonato sul-americano de 1949. Bem como, em concurso promovido pelo analgésico Melhoral, Tesourinha foi eleito nacionalmente pelo povo o maior craque brasileiro, tendo o half Danilo ficado em 2o lugar. Pela eleição, o atacante ganhou de prêmio um apartamento no Rio. Após tais êxitos, no final desse ano Tesourinha trocou o colorado pelo Vasco da Gama e fez parte do inigualável "Expresso da Vitória", equipe na qual o seu amigo Danilo Alvim era uma das estrelas mais luzentes.
Em 50, diante do Uruguai, ele atuou duas vezes na vitória da Taça Rio Branco - perfazendo 23 jogos e 10 gols pelo Brasil. Nessa competição, em 14 de maio - curiosamente, a mesma data em que estreara no escrete em 1944 -, ele se machucou com gravidade e teve que operar os meniscos, o que o pôs fora do escrete que jogou a Copa do Mundo de triste memória para os brasileiros. Em seu lugar, o todo-poderoso técnico Flávio Costa improvisaria o half Alfredo, o meia Maneca, ambos vascaínos, e o são-paulino Friaça, este que, no máximo e em outras circunstâncias, seria suplente do ex-colorado. Assim, convalescendo da cirurgia, Tesourinha viu fugir a chance de jogar um Mundial. E, ainda pior, amargurou com os seus compatriotas aquela derrota histórica no Maracanã.
Compensando o revés, nesse 1950 o gaúcho teve pelo Vasco da Gama o seu único título no campeonato carioca. E ainda defendeu a equipe cruzmaltina na temporada de 51. Em março do ano seguinte, voltou ao sul a pedido do Grêmio, o arquiinimigo do seu ex-clube porto-alegrense. Isso, com um porém: ao aceitar o convite, Tesourinha quebrou um velho, ridículo e repugnante preconceito estatutário: foi o primeiro negro a vestir a jaqueta tricolor. Os fascistóides "gremistas vigilantes" protestaram contra a sua contratação e o ponta-direita com isso fintou também com habilidade esse obelisco da estupidez racista. E recebeu do então vice-presidente do clube, Luís Assunção, esta recompensa: "Tesourinha acabou como o arianismo no Grêmio. É um abolicionista que o Vasco da Gama nos mandou". O craque ficou no Grêmio até 55, época em que no clube Aírton Pavilhão começava a brilhar. A seguir, em troca de um emprego, Tesourinha foi encerrar a bela carreira no apagado time do Nacional gaúcho, onde jogaria os estaduais de 1956 e 57, quando finalmente deu por concluída a profissão de atleta.
Dele, contudo, ficou algo jamais esclarecido: Por que o apelido de Tesourinha? Há quem afirme que veio do fato de brincar Carnaval em um bloco chamado Os Tesouras. Outros acham que era por ter um irmão mais velho conhecido como Tesoura. Por fim, alguns asseguram que foi por causa dos seus dribles "cortantes", parecendo uma pequena tesoura.
Osmar Fortes Barcellos morreu em 16 de junho de 1979 e, homenageando-o, a prefeitura de Porto Alegre deu o seu nome artístico a um ginásio poliesportivo. E ainda a legitimidade de - hoje, junto com Falcão - ostentar na galeria de craques do Internacional a coroa de rei. Justíssimo: Tesourinha fez por merecer tudo isso.
Nota: Este texto é um dos capítulos do novo livro de Antonio Falcão afalkao@hotmail.com, "Os Artistas do Futebol Brasileiro" - 50 minibiografias de A a Z
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