domingo, 22 de junho de 2008

Barbosa

BARBOSA, UM INJUSTIÇADO,

"Quando eles fizeram 2 x 1..., aquele silêncio pesou..., o Ghiggia avançou, eu vislumbrei o centro da área e ali havia três carrascos babando, à espera da bola..., o Bigode vem atrás do Ghiggia, Juvenal tenta fazer a cobertura, indo ao encontro de Ghiggia, mas na entrada da área só tem eles, ninguém da defesa, se ele centra não tem como pegar, é gol na certa, fico esperando Ghiggia centrar, dou um passo à frente, porque ele com certeza vai fazer a mesma jogada do primeiro gol, ele sente que eu estou fora, embora viesse de cabeça baixa como touro miúra, mete o peito do pé na bola e ainda toco nela, crente e que foi para escanteio, afinal foi um chute mascado, bateu no gramado, subiu e desceu, nesse átimo de segundo eu dou um passo lateral e salto para a esquerda com todo o impulso que... quando senti o estádio em silêncio total tomei coragem, olhei para trás e vi a bola de couro marrom lá dentro..."

A narrativa é de Barbosa, da seleção brasileira de 1950, que perdeu para o Uruguai a Copa do Mundo, no Rio. Não obstante, ele foi eleito o melhor arqueiro da competição. É o lance de gol mais dramático do futebol. E por ele Barbosa foi vítima. Só pelo gol, um homem sofreu o resto da vida; por um só gol, o racismo disfarçado do Brasil veio à tona - o mesmo preconceito que discriminara o goleiro negro em uma barbearia de Porto Alegre. Tudo está no livro "Barbosa: um gol completa cinqüenta anos", de Roberto Muylaert.

Moacir Barbosa Nascimento era de Campinas, interior paulista, nascido em 27 de março de 1921. Lá, fez o curso primário numa escola onde ainda aprendeu marcenaria. Mas futebol mesmo - com juiz, uniforme e campo demarcado - só conheceu na capital, jogando de ponta-direita no Almirante Tamandaré, equipe do bairro paulistano da Liberdade. Isso até que, para quebrar o galho - como se diz na gíria -, Barbosa trocaria o ataque pelo gol, quando o Tamandaré enfrentava outro timinho varzeano, na Vila Maria.

E na meta, com 1,76 m de altura, adaptou-se ("não tenho que correr", dizia) e progrediu. Em 1940, ele foi lavar vidro no Laboratório Paulista de Biologia e fechar o arco do time da firma. Nesse ano, uniu-se maritalmente a Clotilde. E, pensando no emprego, estudou química farmacêutica. Só que o Ipiranga paulistano o viu jogar pela empresa e o contratou, fazendo-o ídolo em um time que ia dele, no gol, a Rodrigues (no futuro, também da seleção brasileira) na ponta-esquerda. Em 43, com o Ipiranga cotado no certame, Moacir Barbosa já era dos melhores goleiros paulistas. Foi quando o corintiano Domingos da Guia viu que ele sabia sair do gol com calma, elegância, elasticidade e rapidez de gato. Aí o famoso zagueiro o indicou ao Vasco carioca, que compraria o seu passe em 1944.

No primeiro ano vascaíno, Barbosa fez só duas partidas, e disputando a vaga com mais seis goleiros. Porém, em 45 foi o titular e campeão carioca invicto. Ganhou ainda os títulos estaduais de 1947, 49, 50 e 52. Bem como, na volta ao Vasco, os de 56 e 58 - neste ano, ainda o torneio Rio-São Paulo. E foi várias vezes vitorioso na seleção do Rio de Janeiro.

Em 1945, convocaram-no para o escrete brasileiro e ele estreou contra a Argentina, em São Paulo, onde o arqueiro Oberdan era rei. Daí para frente, até 53, Barbosa esteve na meta do Brasil 35 vezes. E ganhou para o País o sul-americano de 1949, e as Copas Roca e Rio Branco. Sem falar das inúmeras taças internacionais conquistadas pelo Vasco, que à época era chamado de Expresso da Vitória.

Dessas idas ao exterior, o risonho e educado Moacir contava um lance curioso. No México, com um toque, o ponta adversário o encobriu na área vascaína e ele, vendo a esfera ir em direção à rede, deu uma linda bicicleta, "na hora que a bola tinha dado o último pulo antes de cruzar a linha, e mandei para escanteio".

Contudo, no plano das dores físicas, o inesquecível e injustiçado guarda-meta, que tratava a todos com polidez e jamais foi expulso de campo - ganhou, por sinal, o troféu Belfort Duarte -, em 1953 teve a perna quebrada por um maldoso e reles atleta do Botafogo. Por isso - segundo o próprio Barbosa -, não foi ao Mundial na Suíça, onde a Alemanha bateu a favorita Hungria e saiu campeã. O tempo que o goleiro ficou com o gesso na perna fez São Januário o esquecer. E, recuperado no final de 54, torná-lo um mero reserva.

Em 55, o goleiro foi para a cidade do Recife. E lá viu, no ocaso, velhos astros do futebol carioca: no seu Santa Cruz, Marinho, ex-Flu; no alviverde América (hoje, já extinto), Dimas, ex-Vasco; no Sport, o antigo half vascaíno Eli do Amparo e o ex-goleiro botafoguense Osvaldo Baliza. Porém, em julho de 1956, inadaptado ao Nordeste brasileiro, Barbosa se reintegraria ao Vasco da Gama, o clube das suas mais duradouras e irremediáveis paixões.

Ainda foi campeão nesse ano e no super-supercampeonato carioca de 58. Todavia, a época do craque em São Januário findou em 1962. Aos 41 anos, ele desvestiu a camisa cruzmaltina para ter uma passagem pelo Bonsucesso. E se despedir da bola no modesto Campo Grande, em 8 de julho, contra o Madureira. Nesse jogo, esticando-se para deter um chute, Barbosa se contundiu. E na maca, aplaudido por 670 pessoas, contorceu-se de dor na virilha - lesão igual à que, um mês antes, tirara Pelé da Copa do Mundo no Chile. Nisso, no acanhado estádio de subúrbio fez-se um silêncio que - por outro motivo - era tão triste quanto o do fatídico 16 de julho de 50, no Maracanã. Era o silêncio do povo reverenciando um destemido homem vice-campeão mundial de futebol. Para a História, isso deve ter sido pouco. No entanto, para o velho goleiro era tudo.

No anonimato, e desocupado, em 1963, Barbosa soube que a administração do Maracanã iria substituir as balizas do estádio. E que aquela onde o uruguaio Ghiggia fizera o gol da sua sina lhe seria doada. Ele aceitou e, de posse desse símbolo da própria mágoa, em um churrasco e cercado de amigos, o ex-goleiro ardeu no fogo os pedaços de pau da trave como lenha de assar carne. Depois, ainda teve de explicar se o tento de Ghiggia fora frango ou não - pode? Em 1996, na morte de sua mulher Clotilde - e arruinado financeiramente com os gastos para salvá-la -, Moacir Barbosa saiu do Rio, a ex-capital do país injusto que o fizera vilão. E se mudou para a Cidade Ocian, no litoral paulista, onde alugara um apartamento de quarto e sala para findar os seus dias.

Em 7 de abril de 2000, no ataúde simples, as suas mãos postas - que em vida ignoraram o uso das luvas - exibiam onze fraturas. E, entre os poucos presentes ao velório, ninguém sabia que aquele inerte corpo de negro fora vítima de um gol fatídico. E que serviu ao primeiro guarda-redes brasileiro a bater tiro de meta. E talvez ao último a usar joelheiras.

Antonio Falcão

PS.: Este texto integra o livro "Os Artistas do Futebol Brasileiro", que Antonio Falcão afalkao@hotmail.com lançará em breve.

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